sobre duas rodas

Sem garantias, mototaxistas enfrentam riscos e preconceitos no trabalho

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Fotos: Renan Mattos (Diário)

Foi difícil conversar com Cristiano Armany, 43 anos, por pelos menos cinco minutos ininterruptos. Quando a conversa começava a engrenar, um cliente apressado chegava e solicitava uma corrida do ponto da Praça Saldanha Marinho para algum bairro do município. Minutos depois, a moto de cor laranja retornava e estacionava na área delimitada com tinta sobre a Rua Venâncio Aires. E é assim todos os dias desde que Armany e vários outros motociclistas possibilitaram a ampliação do transporte público atuando de forma subsidiária e complementar ao transporte urbano. Em suas rotinas frenéticas, carregam pessoas e encomendas, o que os popularizaram, há pelo menos duas décadas, como mototaxistas e motofretistas.

Em Santa Maria, conforme os 12 trabalhadores da área que conversaram com a reportagem do Diário nos últimos dias, o serviço ganhou expressão no final dos anos 1990. Contudo, foi somente em julho de 2011 que uma lei municipal regulamentou a atividade quando definiu a "prestação de serviços de transporte individual de passageiros e de entrega de mercadorias".

A propósito, quando o assunto é regulamentação, os representantes da categoria aceleram a esteira de reclamações. Entre as críticas, eles alegam incoerências nas regras exigidas, falta de fiscalização e ausência de estrutura e condições de trabalho por parte do município.

- Aqui é debaixo do sol e da chuva, pagando impostos para a prefeitura e sem direito a aposentadoria. Só temos um banquinho de madeira para sentar, porque nos reunimos e compramos. E, há uns dois anos, estamos perdendo clientes para os motoristas de aplicativos - relatou Claiton Iensen, 36 anos, que exerce a função há uma década.

Outro agravante é a inexistência de um sindicato que represente a categoria. O então Sindicato dos Motociclistas (Sindimotos) chegou a existir, mas não tem mais representação na cidade há pelo menos cinco anos, segundo informado por alguns ex-sindicalizados.

Embora centenas deles sejam vistos todos os dias, não pode-se contabilizar com precisão quantos prestam o serviço na cidade. Dados da Secretaria de Mobilidade Urbana informam que estão cadastrados 245 mototáxis, sendo 11 totalmente regularizados, e 166 motofretes, com apenas um em situação regular. (veja mais na página 26)

Contudo, os pilotos sobre as duas rodas afirmam que o número "passa de mil".

- Logo depois que fizeram a lei, ali por 2012 ou 2013, fizeram um cálculo de que éramos 1,5 mil, incluindo esses que trabalham para lancherias e restaurantes. Mas é difícil chegar a essa conta, pois uns fazem bico, param, voltam ...- disse um mototaxista não cadastrado junto à prefeitura e que não quis ter seu nome divulgado.


REGULARIZAÇÃO

Na prefeitura

  • 245 mototáxis cadastrados, sendo 11 regulares
  • 166 motofretes cadastrados, sendo apenas 1 regular 

Não cadastrados

  • Cerca de 1,5 mil , segundo levantamento de 2012/2013 

Conforme a legislação

  • Lei Municipal 4.477/01 - Institui o serviço público de transporte de passageiros denominado de "mototáxi" no município providências
  • Lei Federal 12.009/09 - Regulamenta o exercício das atividades dos profissionais em transporte de passageiros, "mototaxista", em entrega de mercadorias e em serviço comunitário de rua, e "motoboy", com o uso de motocicleta, altera a lei 9.503, de 23 de setembro de 1997, para dispor sobre regras de segurança dos serviços de transporte remunerado de mercadorias em motocicletas e motonetas - motofrete - e estabelece regras gerais
  • Lei 5.490/11 - Revoga a Lei Municipal 4.447/01 e regulamenta a prestação de serviços de transporte individual de passageiros e de entrega de mercadorias no município
  • Lei 13.855/19 - Aumenta a punição para transporte irregular. A nova legislação vale para ônibus ou van escolar sem autorização ou transporte remunerado de pessoas ou bens que responderão à infração gravíssima, com multa e perda de sete pontos na CNH, além da remoção do veículo como medida administrativa

DUAS DÉCADAS
Não há avenida ou bairro que Sione Rossi, 46 anos, não conheça em Santa Maria. Mototaxista há cerca de 20 anos, honra-se de nunca ter sido assaltada e manter antigos clientes, sobretudo outras mulheres, o que ela credita ao tratamento e à confiança que transmite. 

Quando começou a correr as ruas carregando passageiros em sua motocicleta, fazia parte de um pequeno e pioneiro grupo de um "serviço inventado", que vinha dando certo em outras cidades. Trabalhou em diferentes regiões. Assim que o município fez o chamamento para que os mototaxistas se regularizassem, em 2011, ela providenciou tudo. Inclusive, abdicou de certos confortos, como ela mesma refere, para estar dentro da lei. Antes ficava em um imóvel cujo aluguel era dividido com outros colegas. Lá, tinha geladeira, televisão e banheiro. Há cerca de cinco anos, está no ponto da Rodoviária, que foi demarcado e autorizado pela prefeitura.

- Tínhamos um espaço que era como se fosse nossa segunda casa, mas eu queria estar legal e não me incomodar. Mas, para isso, tu precisas apresentar todas as negativas como se fosse em um concurso: as negativas de polícia e as que comprovem que tu não deves nada. Depois, tem que fazer o curso de mototaxista e apresentar a documentação da moto em dia. Aí, eu te pergunto: qual é a nossa vantagem? Nenhuma, né. A prefeitura só quer saber das taxas. Benefício é para o passageiro que sabe que a moto é cadastrada, que somos conhecidos e temos seguro - analisa a trabalhadora ao comparar a sua situação com a de quem não está regularizado.

Dos 245 de mototaxistas, apenas 11 estão 100% regulares. Sione é uma delas. Apenas ela e outra motociclista integram a representação de mulheres na categoria junto à prefeitura. 

SEM GARANTIAS

Na Classificação Brasileira de Ocupações, do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), não há registro profissional para mototaxista ou motofretista. Apenas o motoboy, sob o número 5191-10, descrito como "motociclista no transporte de documentos e pequenos volume" está registrado como ocupação.

Cezar Araújo da Rosa, auditor fiscal do MTE em Santa Maria, informou que não há dados estatísticos quanto ao número de pessoas que exercem essa atividade na cidade.

A Lei Federal 12.009, que regulamenta a função de mototaxista, legisla sobre idade, CNH e obrigatoriedade de ser aprovado em curso direcionado ao exercício profissional. Já o Conselho Nacional de Trânsito (Contran) aprovou regras para esses cursos especificando o uso de equipamentos de proteção nas motos, bem como esclarecendo a competência dos municípios em regulamentar e fiscalizar os serviços.

- O único local que oferece o curso em Santa Maria é o Sest/Senat, mas há colegas cadastrados na prefeitura que não conseguem estar totalmente regulares porque tentam fazer o tal curso, mas nunca fecha uma turma - conta Sione.

 A atividade, que por um lado é escolhida pela autonomia que proporciona, sem exigir horário fixo e vínculo trabalhista, por outro, tem a informalidade caracterizada pela falta de registro em Carteira de Trabalho, o que impossibilita a condição de contribuinte. Com isso, fica inviabilizado o direito a férias, 13° salário, aposentadoria e licença remunerada por doença.

- Pagamos impostos para a prefeitura, mas o retorno é zero. Não temos direito a nada. Eu garanto minha aposentadoria porque contratei um contador e pago meu "INPS" (hoje, INSS) por fora - acrescenta a mototaxista.

"TROQUEI A CARTEIRA ASSINADA PARA TRABALHAR 12 HORAS POR DIA"

Há três anos, Celso*, 48 anos, trocou o emprego com carteira assinada pelo dia a dia incerto sobre as duas rodas. Poder fazer o próprio horário, não ter chefe e, principalmente, a quantia de dinheiro obtida com o serviço foram determinantes.  

- Sou casado e tenho dois filhos. A única renda da casa é a minha. Eu trabalhava em uma indústria, mas pesou no bolso, e a moto dá mais retorno (financeiro), não adianta. A gente não tem muito o que escolher. Hoje, venho cedo da manhã e vou até a noite. Tem colegas que trabalham 15 horas e chegam a tirar uns R$ 4 mil. Claro que não é sempre, pois prejudicamos a saúde. É gripe e dor de garganta no inverno e no verão. Um colega teve até pneumonia no ano passado, de tanta chuva que tomou nas costas - conta.

Celso não está cadastrado na prefeitura e diz que nem pretende. No mesmo local em que trabalha, há outros 20 homens. Cada um paga R$ 12 por dia para ser vinculado ao ponto. O valor deve ser pago independentemente de se ausentarem no trabalho. No mesmo estabelecimento, um mototaxista de 50 anos, há 10 atuando no segmento, conta que por duas vezes esteve com a situação regular junto ao município:

- Olha como deixam as criaturas que têm a moto laranja (cadastrados). Ali na Venâncio, eles ficam sentados no banco da praça. Nem um lugar tem uma guarita ou uma meia-água (cobertura). Os fiscais só sabem cobrar. Tem que ter antena corta pipa, sendo que nem pipa tem na cidade, pois não estamos no Rio de Janeiro. Se te pegam com um detalhezinho fora do padrão, é no, mínimo, R$ 200 de multa. Não me regularizo mais.

PRECONCEITO
O mototaxista concorda, porém, com as frequentes revistas policiais, mas salienta que existe um preconceito que precisa ser combatido. 

- Tem gente que nos tira para bagaceiros por conta de fatos isolados, de um caso em um universo de mil. Para mim, quanto mais a polícia nos abordar, melhor. Eles revistam nós e os caronas. O problema é que, às vezes, o cara é um "mandrake" ou envolvido com tráfico e sai preso. Aí, a gente sai queimado por carregá-los. Como se fosse possível adivinharmos. O que podemos evitar e nos negamos mesmo é de ir a locais suspeitos ou carregar drogas. A minha ficha é limpa, e honestidade eu trouxe de casa - afirma.

*Nome fictício, pois o entrevistado não quis ter o nome divulgado.

ROTINA E RISCOS
Cicatrizes e sustos pesam na carga dos trabalhadores de motocicletas que já escaparam por um triz da morte. O cotidiano envolve o risco de acidentes de trânsito e de assaltos. Segundo um homem de 45 anos, que acumula as funções de mototaxista e motofretista há 12 anos e que não quis ter o nome divulgado, a ameaça por conta da criminalidade já foi maior anos atrás. Quanto às imprudências ao volante, ele afirma que são comuns, mas as generalizações recaem sobre a categoria. 

- Os taxistas são mais assaltados. Da gente, meio que largaram de mão. Não que não seja perigoso. Já os acidentes de moto acontecem com os motoqueiros em geral. Não é porque fizemos tele (serviço de telemoto). O pessoal pode até ter pressa para receber um lanche e o tele dar umas "rateadas", mas quando vai alguém na garupa, se passar de 60 km, perde o cliente. A gente se cuida muito mais. Qual foi a última vez que tu ouviste falar que um de nós se acidentou? Os pinos que tenho na canela, por exemplo, são resultado de um cara que me cortou a frente da moto, me derrubou e fugiu. Era um domingo, e eu nem estava trabalhando. Mas o que dizem é que "o telemoto se acidentou" - relata.

Um outro mototaxista, que também quis ter o nome preservado, sinaliza que os riscos da profissão, muitas vezes, são indiretos.

- A gente leva familiares ou os próprios caras do semiaberto para o Regional (presídio). Nunca nos fizeram nada, nos respeitam, pagam direitinho. Só que a gente sabe que já houve acerto de contas na hora de entrada e saída deles. Teve tiroteio e morte lá na frente. São corridas que não negamos, mas que acabam sendo perigosas - explica.

ELES RECLAMAM DA FISCALIZAÇÃO 
Claudio Penadez, 48 anos, orgulha-se da profissão que exerce há 20 anos. Ele é conhecido na cidade, já que trabalha em um dos pontos mais centrais: o da Rua Venâncio Aires, em frente ao prédio da SUCV. 

- Desde guri, sempre tive moto e foi com ela que vi um jeito de colocar dinheiro em casa. Eu não estudei e vi que, fazendo os serviços de mototáxi, ganharia mais que no comércio. O problema é que a gente não tem um suporte do município e só tem gastos: é seguro, alvará, treinamentos. Na hora de fiscalizar, não vão nos clandestinos, vão em nós. Os fiscais sabem de todos os pontos ilegais e que o pessoal segue na rua trabalhando, mas não fazem nada - reclama.

Outra questão levantada por Penadez é o aumento de motoristas de aplicativos. Segundo ele, são uma concorrência injusta, já que não pagam impostos, não são fiscalizados e, de carro, acabam cobrando o mesmo valor dos deslocamentos feitos com motocicleta. Ele também lamenta não ser o amparo de uma associação ou sindicato da categoria.

- Somos sozinhos em tudo- lamenta.

A Secretaria de Mobilidade Urbana informou, por meio da Superintendência de Comunicação da prefeitura, que a fiscalização é feita com a abordagem dos veículos e pontos por fiscais de Trânsito e Transportes, e na circulação, por agentes de trânsito e policiais. Até o momento, não houve notificações registradas em 2019.

José Orion Ponsi da Silveira, titular da pasta, diz que trabalha com prioridades e que, hoje, a secretaria dispõe de apenas seis fiscais:

- Nossa prioridade é o transporte coletivo urbano e o escolar e, depois, os transportes individuais. Nossa demanda é muito grande para o número reduzido de fiscais que temos.

"APENAS SEGUIMOS O QUE ESTÁ NA LEI"

O secretário esclarece que, apesar de só 11 dos 245 mototaxitas estarem regularizados, os demais apresentam pendências que não comprometem a circulação dos veículos nas ruas. Em geral, são licenças em fase de renovação, vistorias e pequenas adequações. 

Quanto aos demais, Ponsi informou que as fiscalizações se dão em duas frentes: as de execução do serviço, com inspeções de trânsito, feitas pela pasta da Mobilidade Urbana; e dos ponto do comércio, que fica a cargo da Secretaria de Estruturação e Regulação Urbana, onde já há procedimentos abertos. A natureza das autuações e o valor das multas varia para cada caso.

O secretário rebate a reclamação de que o município não dá contrapartida e suporte ao serviço. Ele também descarta a possibilidade de a prefeitura criar espaços como guaritas, coberturas ou banheiros para esses profissionais.

- É inimaginável investirmos nessas estruturas. Apenas seguimos o que está na lei. O que acontece é que muitos não preenchem requisitos, têm antecedentes que podem comprometer o serviço ou não querem prestar contas e caem na irregularidade. Agora, quando tu assumes uma concessão pública, há determinados ônus. Todos os modais de transporte público urbano, escolar, individual de táxi, mototáxi e motofrete, tem de estar autorizados pelo município para obter lucros e prestar um compromisso de segurança e credibilidade para comunidade. Esse já é um benefício por si só - argumenta.

No dia 9 de julho, foi publicada no Diário Oficial da União, a Lei 13.855, que aumenta a punição para transporte irregular. A nova legislação vale para ônibus ou van escolar sem autorização ou transporte remunerado de pessoas ou bens que responderão à infração gravíssima, com multa (multiplicada por cinco, no caso do escolar) e perda de sete pontos na CNH, além da remoção do veículo como medida administrativa. As novas punições entram em vigor em 90 dias a contar de publicação

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